Duas grandes universidades de medicina da Bolívia, Unicen e Udabol, são acusadas por alunos de omissão sobre relatos de extorsão, tortura e assédio moral e sexual por professores. Na última segunda-feira, 18, manifestantes protestaram após a morte de um aluno brasileiro, que estagiava em um hospital na região de Punata, em Cochabamba, na Bolívia.
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O UOL conversou com a família de Sebastião Peixoto, que confirmou a informação. Daniele Peixoto Pereira, que vive no Brasil, disse que o irmão não suportava mais os maus-tratos e que já tinha pedido socorro à direção da Udabol e ao Consulado Brasileiro em Cochabamba. "Ou trabalha, ou morre. Não se importam com você", diz uma mensagem enviada pelo brasileiro à irmã dias antes de cometer suicídio.
Procurados pelo UOL, professores acusadospelos alunos negaram as acusações. As universidades não responderam.
O que aconteceu
O caso de Sebastião Peixoto, 46 anos, não é isolado. A reportagem do UOL teve acesso a depoimentos, fotos, conversas e documentos em áudio e vídeo que mostram a situação dos alunos. Eles foram ofendidos por professores e, em alguns casos, extorquidos em troca de benefícios.
Ana (nome fictício) é estudante do quinto semestre de medicina e acusa professores da Unicen de Cochabamba de abuso psicológico e assédio sexual. A brasileira está na Bolívia há três anos.
Logo que eu cheguei na universidade foram me avisando: 'Olha, o professor de anatomia, Ivan Jesús Ayala Mojeron, tem preferência pelos brasileiros. Se você não fizer o que ele quer, não vai passar de ano
Estudante brasileira da Unicen
A aluna também cita outro professor: Gary Ayla. Segundo um estudante, o profissional persegue as alunas que rejeitam os avanços sexuais dele. “Amigas minhas que não aceitaram as cantadas foram extorquidas para se manterem no curso”, diz.
A recém-formada SG, 25, concluiu o internato em julho do ano passado. A médica é de São Paulo e está há 7 anos na Bolívia. Um profissional conta que é comum que os alunos sofram abusos psicológicos, humilhações e maus-tratos.
Eu gravei vídeos durante os descansos rápidos que tivemos, para não esquecer que passei por tudo isso calada. Nos mandavam para lugares insalubres para morar durante o período de internato. Não há lugar para dormir, tomar banho ou comer. Cheguei a participar de até 6 cesáreas seguidas, fico pensando como isso foi possível. Desmaiei pelo menos três vezes para não conseguir me alimentar direito. Cansei de ver colegas de curso com fadiga, infecção urinária, AVC por estresse e depressão
SG, médica brasileira formada na Bolívia.
Estudante da Udabol, Sebastião Peixoto escreveu uma carta aberta nas redes sociais antes de cometer suicídio em 13 de novembro. Sebas, como era conhecido pelos colegas, disse em mensagens para a família que perdeu 12 quilos em apenas 2 meses, e que se sentia muito fraco. Ele relatou que não aguentou mais a pressão da carga horária e as humilhações.
Meu irmão pediu socorro, tentamos ajudar, eu implorei para ele voltar, não deu tempo. Ele pediu para mudar o local de trabalho, não permitiu. Ele alertou que viu colegas infartando, e outros até tirando a própria vida, ele não foi o primeiro. Meu irmão sempre teve um sonho de ser médico, por isso foi para a Bolívia. Até quando tanto descaso? Nem água ofereciam para o meu irmão. Passou fome, sede e humilhações. Quero justiça.
Daniele Peixoto Pereira, irmã de Sebastião
Em uma mensagem de áudio enviada para a família, Sebastião diz: "Tem dia que eu tomo um gole de água de manhã, e depois só volto a tomar água as oito da noite. Estou com medo dos meus enxágues pararem. Não vou aguentar , estou falando para vocês. Eu preciso mudar urgentemente de hospital. Isso é massacre, escravidão e suicídio, tenho 46 anos, não vou suportar isso”.
Sebastião era casado com uma boliviana e deixa dois filhos. Um de 3 meses e uma adolescente de 14 anos, que mora na Bahia.
O que dizem os envolvidos:
O professor Gary Ayla negou as acusações. Ele diz que desconhece essas denúncias, e que procurará os seus direitos de defesa contra as calúnias.
A secretária de Ivan Jesús Ayala Mojeron disse que as acusações são “um engano”. O médico não falou com a reportagem.
A reitoria da Universidade Unicen, onde os professores já trabalhavam, foi procurada, mas não respondeu. O espaço segue aberto.
A Universidade Udabol, responsável pelos estágios do médico que morreu, também não respondeu.
Uma Dra. Elizabeth Mareño Colque, coordenadora da Sedes em Punata, uma espécie de secretaria de saúde na Bolívia, disse que uma investigação foi aberta para que situações como esta não se repitam. "Não temos conhecimento desses absurdos. Abrimos um processo interno para ouvir os envolvidos, além dos órgãos de investigação e da Justiça boliviana. Juntos vamos apurar todas as denúncias que chegam até o nosso órgão. Queremos melhorar e estamos tratando de ações positivas. Queremos um melhor contato com todos os estudantes, inclusive os brasileiros.
Não podemos mais admitir que absurdos como esses acontecimentos. Precisamos colocar um limite, não estamos mais em épocas antigas onde se colocava pressão em profissionais de saúde. Vamos melhorar", disse.
O Itamaraty, por meio de suas repartições consulares na Bolívia, diz que acompanha a situação dos estudantes brasileiros no país. O consulado informou que está em contato com as autoridades bolivianas para apurar denúncias de episódios de xenofobia e de maus-tratos.
Procure ajuda
Caso você esteja pensando em cometer suicídio, procure ajuda especializada como o CVV e os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) de sua cidade. O CVV (https://www.cvv.org.br/) funciona 24 horas por dia (inclusive feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.